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APRENDIZ DE EQUILIBRISTA
A lembrança mais antiga que possuo associada à minha carreira era o hábito que eu possuía de observar a distância as pessoas interagindo e imaginar o que estava ocorrendo entre elas. Achava que era possível supor isso simplesmente observando o contexto mais amplo e as expressões corporais presentes na situação. Essa atividade tinha um sentido lúdico para mim e ainda faço isso de vez em quando. Como se tratava apenas de um passatempo, não podia imaginar que esse fascínio pelas pessoas em interação e, sobretudo, pelo aspecto comunicacional deste processo faria parte do conjunto de elementos que definiriam minha escolha profissional.
Já na graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ) me aproximei bastante da Psicanálise e cheguei a participar de grupos de estudos sobre o tema que ocorriam de forma concomitante à faculdade. A época essa era uma prática comum, bem como certa hegemonia da disciplina fundada por Freud entre as teorias clínicas. A contundente história da Psicanálise e seus desdobramentos para a história da cultura ocidental exerciam, justificadamente, uma atração quase irresistível nas nossas mentes. Dois acontecimentos, no entanto, iriam provocar um revés nesse percurso. O primeiro se tratou de minha participação em uma matéria ministrada pela saudosa professora Carolina Lampreia chamada “Pensamento e linguagem”. O seu rigor e conhecimento acadêmico abriu definitivamente meus olhos para a importância de assumir uma postura sempre crítica em relação à prática clínica. O “tiro de misericórdia”, no entanto, se deu no momento em que comecei a estagiar no já extinto Hospital Dia Casa do Alto e, posteriormente, como membro da equipe de Acompanhamento Terapêutico de outro hospital dia, o “Casa Verde”. Ali, nas dificuldades geradas no confronto entre nossas expectativas terapêuticas e o que podíamos extrair de nossos pacientes psiquiátricos, é que pude compreender a natureza complexa do trabalho clínico. Foi nessa seara que pude constatar de forma definitiva que as abordagens intrapsíquicas não responderiam a todas as minhas inquietações profissionais.
As características do trabalho como acompanhante terapêutico, originalmente conhecido como Auxiliares Psiquiátricos, de buscar reconstituir o que Lacan chamava de “laços sociais”, intervindo diretamente no cotidiano dos pacientes, me fez perceber que havia algo nas relações familiares que precisava de cuidados específicos. Do contrário, todo o esforço empreendido poderia acabar se perdendo. Além disso, sentia que a Psicanálise não fornecia um instrumental teórico adequado para enfrentar os desafios oriundos desse nível de atuação. Creio que foi nesse momento que minha predileção prematura pelos aspectos comunicacionais da interação humana tenha me levado a abandonar de forma definitiva o projeto de participar de uma formação em Psicanálise e me engajar numa especialização em terapia sistêmica de família e casal. Foi assim que me tornei aluno do já extinto Instituto de Terapia de Família do Rio de Janeiro (ITF/RJ). Foram quatro anos de rica convivência e intenso aprendizado. Uma janela fundamental se abriu em minha compreensão sobre o ofício do terapeuta através de uma perspectiva teórica com a qual logo me identifiquei.
A época da especialização um de meus professores, Carlos Eduardo Zuma, me convidou a participar como sujeito de pesquisa em um projeto chamado “Homens, saúde e vida cotidiana”. Se tratava de uma iniciativa pioneira no país, conduzida em parceria pelas equipes da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/FIOCRUZ) e pelo Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva (NESC/UFRJ). A pesquisa buscava investigar uma série de aspectos ligado as masculinidades, sobretudo na sua interface com a saúde sexual e reprodutiva. A pesquisa utilizou a metodologia de pesquisa-ação e formou grupos de homens com diferentes perfis socioeconômicos em diversos pontos da cidade para que seus membros refletissem sobre diversos temas relacionados a masculinidades durante seis meses. Meu grupo foi realizado na sede do Instituo Noos, organização do terceiro setor fundada por quatro professores do ITF/RJ, dentre eles o próprio Zuma. Até aquele momento eu nunca havia tido a oportunidade de perscrutar minha identidade de gênero de uma maneira tão sistemática e ampla e muito menos com a participação de outros homens. Aceitei o convite porque me pareceu uma proposta inovadora. No entanto, não esperava que esta experiência influenciaria os rumos da minha vida laboral de forma tão duradoura.
Foi um processo com repercussões muito profundas para todos que o integraram. Tanto assim que o grupo do qual fazia parte optou por continuar a se reunir após seu término. Sob o estímulo e coordenação de Fernando Acosta, psicólogo que havia integrado a equipe da pesquisa como Facilitador do nosso grupo, e com o apoio do Instituto Noos, decidimos nos dedicar ao estudo do tema que mais nos mobilizou: a violência provocada por homens contra as mulheres. Em seguida, esta iniciativa evoluiu para uma atuação concreta junto a homens que haviam sido acusados de terem sido violentos com suas parceiras íntimas através do desenvolvimento de uma metodologia de grupos de reflexão, que abriu todo um novo campo de atuação social e transformou o Instituto Noos numa das organizações pioneiras nesta área no país.
A partir daí as relações de gênero, a violência intrafamiliar e de gênero e os aspectos metodológicos das práticas profiláticas na interface entre os dois temas tornaram-se temas perenes para mim. Meu mestrado em Psicologia Clínica, também pela PUC/Rio, seguiu por essa via. Trabalhei e coordenei diversos projetos de atenção a homens em situação de violência intrafamiliar e de gênero em diferentes contextos. Atualmente, ainda sob a chancela do Instituto Noos, ministro capacitações sobre a metodologia que hoje é conhecida como “Grupos Reflexivos de Gênero” e presto consultoria a grupos e organizações que desenvolvem trabalhados voltados para homens.
A uma determinada altura da minha clínica particular me vi as voltas com a necessidade de revisitar a metapsicologia freudiana e seus desdobramentos, pois constatei que a ela havia deixado uma impressão mais profunda do que estava pronto a aceitar no passado. Então resolvi “liquidar essa fatura” e atualmente também tenho me dedicado a novamente estudar Psicanálise. Para minha grata surpresa, tenho constatado que uma parte considerável e importante de estudiosos tem empreendido a tarefa, já fazem alguns anos, de incorporar uma visão menos endógena da disciplina e mais alinhada a ao pensamento complexo (e, por que não, sistêmico). Mal posso disfarçar minha satisfação com essa descoberta.
De lá para cá são aproximadamente 25 anos de um percurso que classificaria como heterogêneo. Vivi algumas crises de pertinência e identidade profissional, mas, ao completar esse texto, reflito que se paga um preço por sempre estar disposto a testar o limite das próprias crenças. No final das contas, ainda tento ser um bom aluno da professora Carolina Lampreia e um filho que segue os ensinamentos de um homem que não tinha ensino superior, mas sabia e não cansava de dizer que o diploma não é um fim, apenas te dá o direito de “começar a aprender”

Alan Bronz
Psicólogo clínico, Especialista em Terapia de Família e Casal e Mestre em Psicologia Clínica.
Instagram @psialanbronz