Casamento, teoricamente, é uma parceria, uma vida compartilhada e acompanhada na alegria e na tristeza na prática do dia a dia dos casais. Isso se faz de muitas formas e, às vezes, não se faz de fato, só de direito ou se perde em parcerias parentais e/ou patrimoniais onde, acima de tudo, a sociedade familiar se sobrepõe ao casamento, à vida a dois, à vida de dois.
O que quero dizer é que existem muitas formas de se estar casado.
Cada membro de um casal traz seu conceito de casamento, carregado de expectativas, para vida conjugal. Nem sempre isso é explicitado nem negociado pelo casal, o que gera acordos explícitos e acordos implícitos e assim constroem-se padrões relacionais com pontos cegos onde, muitas vezes, relações de amor, cooperativas, transformam-se em relações de poder onde a competição predomina.
O que denomino casamento de fato é uma relação viva que se percebe como instável e vulnerável enquanto humana, sujeita a momentos que demandarão muito investimento emocional, muita confiança mútua baseada numa ética que preserve a intimidade na parceria, mais “cá entre nós” do que “eu e eles”.
A comunicação, a troca de ideias e de sentimentos, sem medo, precisa acontecer, bem como a percepção da individualidade de cada membro do casal precisa ser respeitada. Portanto, o desafio é enorme para se conseguir uma vida a dois, intimidade, e uma vida de dois, individualidade.
Esses seriam os “is” da vida conjugal e o verbo casar seria conjugado no gerúndio, o casal irá se casando ao longo da vida. Talvez esta seja a maior aventura em que homens e mulheres possam se arriscar. Onde a vida e a morte desafiam a cada instante a segurança e a estabilidade, onde adaptação e acomodação podem trazer estagnação. Onde será exigido a renovação de padrões relacionais no decorrer do ciclo vital.
E aí a morte chega desarrumando a vida. E chega a viuvez que traz a solidão, o espectro da relação dos dois sob a marca da falta.
Desta forma, como era o casamento, com todas as suas nuances, é que será a viuvez daquele que ficará só, que perderá o amor, o parceiro, o amigo, o sócio, o pai/mãe de seus filhos ou avô/avó de seus netos.
Portanto, não existe a viuvez, mas muitas “viuvezes” com sua perda predominante. Quem perdemos influenciará como vamos dar conta do luto que segue à morte, ao corte, à ausência e à possibilidade ou não de se dizer adeus.
A pessoa e o papel que desempenhava na parceria e o significado que tinha para quem a perdeu será importantíssimo para a elaboração do luto.
Se, durante a vida, o padrão conjugal existente entre o casal não foi visto, agora, será inevitável essa visão do passado relacional. A morte traz a separação. O intervalo, o vazio que sempre existiu entre os dois, pode ter sido muitas vezes negado. Agora esse vazio torna-se concreto e visível.
Outro fator que colore a viuvez de vários tons é o momento do ciclo vital em que ocorre a separação irrecuperável de alguém.
De quem sentiremos falta dependerá de quanto de passado, de presente e de futuro a relação teria e ainda poderia ter, não fosse o corte da morte.
Interrupção da vida de um e fim da parceria de dois. Este fato impõe uma reorganização inadiável que, se não acontecer, trará consequências no tempo: fixando o passado com lembranças vívidas de uma vida já vivida. Onde o presente perderá o brilho e o futuro nunca chegará.
Continuar viúvo /viúva é se esforçar, dramaticamente, para parar o tempo.
É o momento do ciclo vital mais a qualidade do vínculo do casal que nos faz compreender os matizes de uma viuvez.
Outra questão importante é o gênero de quem vai e de quem fica com seus diferentes papéis desempenhados na vida a dois: seus scripts e suas pautas. A morte encerra também uma dinâmica relacional, para que se recomece uma nova forma de estar no mundo: ser só um homem só ou ser só uma mulher só.
E, desse modo, a partir do processo de luto que se faz com o passar do tempo e da constatação da solidão, cria-se a possibilidade de novos encontros. Na primeira etapa do luto do parceiro/parceira ocorre um processo de diferenciação.
É preciso se separar do outro que vive em mim. A dor é muita; dependendo do grau de fusão que o antigo casal tinha, o processo se torna muito difícil e trabalhoso.
As medidas práticas a serem tomadas: inventário, contas, imposto de renda, nos empurram, ou não, a matar a existência do outro no pragmatismo da vida. Porém, o mais difícil é a separação emocional e o processo de reinvenção de si mesmo.
O sistema social oferece em cada fala um amor substituto sem entender que a perda de um parceiro/parceira verdadeiro não é substituída por pais, filhos, netos ou amigos.
Esse consolo é um equívoco para quem perde uma pessoa que era depositária do seu amor e da sua confiança e com quem se exercia a intimidade.
Essa é a travessia da dor inevitável. Mas a consciência, o enfrentamento dessa dor e a apropriação da própria capacidade amorosa – que não morreu com o outro – é o que pode motivar o recomeço.
O viúvo/viúva que atravessa a dor, a solidão, elaborando seu luto, aprendendo com sua experiência, poderá, a partir de um processo de individuação, encontrar-se consigo mesmo, com suas necessidades, reposicionando-se em seus papéis familiares e conseguindo, então, desfrutar de sua liberdade, abrindo possibilidades de se reinventar neste novo momento da vida, podendo até mesmo encontrar um novo parceiro/parceira.
Regina M. Cavour
Psicóloga, Terapeuta de Família e Casal, vinculada à Núcleo Pesquisas RJ, Associada da ATF-RJ
Admiração e aplausos pelo excelente texto que apresenta o percurso da parceria até o corte final pela morte, bem como o enfrentamento da dor para o recomeçar do viúvo/a através da individuação.
Excelente texto. Retrata o caminho da vida a dois e o seu fim. Muito lindo. Muito verdadeiro e muito triste. Recomeçar um novo ciclo depois de muitos anos juntos não deve ser fácil. Requer força , sorte e vontade . É querer viver .
Parabéns Regina pela aula de vida que vc nos passou com este lindo texto.
Regina seu texto é lindo.”É preciso separar do outro que vive em mim”. Dura e doces palavras. Obrigada por ampliar o dia de hoje incluindo os viúvos, viúvas e todxs que perdem seus companheiros. Pouco se fala sobre esse estado . Essa nova forma de viver na família e as novas chances. Obrigada
Muito bom Regina querida!
A viuvez trazendo de novo e fortemente a questão da diferenciação que nunca terá fim!
Obrigada por compartilhar!
Muito verdadeiro o texto sobre viuvez- como tudo o que a Regina faz!
Um texto que ajuda a pensar em toda forma de luto, de perda. Gostei muito disto: “e o verbo casar seria conjugado no gerúndio, o casal irá se casando ao longo da vida.”
Estou viúva a 8 meses e minha solidão e tão grande que quase consigo tocar nela, adorei o texto, mas está bem difícil elaborar a vida sem meu único amigo, amor, companheiro…..minha família, estou sozinha nesse mundo inóspito!!!
Vai fazer 10 meses que perdi meu esposo pro covid, ele tinha apenas 43 anos, tínhamos tantos planos.
Às vezes me sinto tão sozinha que nada pode preencher o vazio que ele deixou, mesmo com 3 filhos e meus parentes por perto, sempre vai faltar alguém muito especial, a saudade dói muito!😔