O que é um acidente? Um acontecimento casual, fortuito, inesperado; uma ocorrência com o tempero de algo desagradável e infeliz, que implica danos.
Lá se vão 22 anos do ocorrido. Lembro-me da alegria da minha filha caçula ao ser acordada pelo despertador, no feriado de 21 de abril, para ir à fazenda da família de amigos. Aprontar-se, aproveitar para colocar roupa nova como forma de celebrar o encontro. Ficar diante do espelho, reclamar que os cabelos não estavam como ela gostaria e o beijo de despedida. Eu não tinha noção de que seria o último e de que aquela cena diante do espelho não se repetiria. O peso do último é uma ferida que machuca.
A recém conquistada Carteira Nacional de Habilitação da minha filha lhe permitiu estacionar o carro na garagem da amiga e ir de carona pela estrada que conduziria ela e três amigos ao destino. Quatro passageiros cheios de vida e sonhos. Fiquei em casa com meu marido, minha filha mais velha e a imagem da despedida. Era 21 de abril de 1998. Passamos bem o dia, embora tenha sentido pesar ao saber da morte súbita do político Luiz Eduardo Magalhães. Meu marido e eu organizamos os documentos para realizar a declaração de imposto de renda e minha outra filha saiu com as amigas.
No fim da tarde, recebemos um telefonema informando sobre o acidente e indicando que fôssemos ao pronto-socorro. Saímos imediatamente, sem ter noção do que nos aguardava.
O fato de meu marido ser médico facilitou sua entrada no hospital e ele pôde se certificar de que a nossa filha não estava lá. Foi o primeiro de uma série de choques. O próximo passo foi ligar para a Polícia Rodoviária e buscar informações. Quando meu marido deu a possível localização do acidente, recebeu a seguinte informação: “Ah, nesse acidente só houve uma morte, uma tal de Camile. O que o senhor é dela?” A resposta, que representou um marco inimaginável, foi: “Pai”.
Vinte e dois anos se passaram e continuamos refletindo sobre esse impacto e sentindo suas consequências. Faço essas considerações de um lugar de fala, o que me dá consciência do espaço e tempo que ocupo como mãe, psicoterapeuta, docente, cidadã e aprendiz, desenvolvendo lucidez, como protagonista e coadjuvante, no cenário de conversações sobre as perdas, as dores, as mortes e os lutos. O desafio é o de impedir o silenciamento de vozes. Devo me apropriar da liberdade para me reconhecer e entender como enlutada, situar-me nesse processo e expressar-me a partir dele.
Apresento duas mudanças paradigmáticas. A primeira é a ideia de que o luto tem prazo para acabar. O luto não termina, essa marca é para sempre. A palavra superar chega a ser ofensiva se com ela vem a ideia que se deletou da memória o ente querido. Costumo me orientar por verbos iniciados por “re”. É como se o impacto da ruptura da perda nos desse um tranco, provocasse uma marcha a ré no fluxo da vida. O choque avassalador vai sendo assimilado e o sofrimento desmedido dá lugar à dor, que também nos abre para coconstruir bem-estar. Ressignificar, reorganizar, reparar, restaurar, recriar…
Outra mudança paradigmática se refere à vida pessoal do psicoterapeuta. Um dos apoios da ciência moderna é o princípio da neutralidade. Entretanto, a ciência novo-paradigmática, pós-moderna, se apoia em três pilares conectados, aos quais farei referência mais adiante. Neste momento, refiro-me à intersubjetividade, assegurando a ilusão da objetividade sem subjetividade e o perigo da subjetividade sem objetividade.
A partir de 22 de abril de 1998 minha vida mudou integralmente, inclusive nos aspectos pessoal, afetivo, familiar, profissional, social e espiritual. Experimentei uma crise inominável, vivi grandes limites e identifiquei alguns convites para novos caminhos.
Compartilho aqui uma experiência, entre tantas, para ilustrar o que aconteceu na dimensão pessoal. Três meses após a morte da Camile, me dei conta de que a minha carteira de identidade estava danificada. No contexto da modernidade (Ibañez, 2001), a identidade pode ser tratada de maneira estática, materializada na carteira de identidade. No mundo pós-moderno, porém, as identidades não são fixas e se transformam em interações, constituindo-se a partir dos significados que damos às histórias. O processo de construção das identidades se dá nos contextos sociocultural e histórico. Como afirma Shotter (1997), nossa vida e nossas identidades encontram-se entrelaçadas às realidades conversacionais que criamos nas interações. Significar é relacional, contextual e colaborativo.
Diante dessa desordem imposta, tudo que se concebe como certo e garantido se desfaz, e o indivíduo se vê forçado a reconstruir um novo modo de viver para se sentir seguro […] o que se pronuncia é uma “não identidade”, pois, num indefinido espaço de tempo, não é possível reconhecer a identidade prévia, tampouco a nova que emerge diante da ausência de um vínculo significativo. (Casellato, 2020, p. 27)
A construção da identidade pode ser compreendida como um processo dinâmico em que a pessoa participa da narração utilizando o tempo passado, presente e futuro, em um contexto interacional formado por pessoas, grupos, animais e objetos que existem ou tenham existido. Duas referências são relevantes: onde a pessoa se encontra e aonde ela quer chegar.
Providenciar um novo documento, muito mais do que uma nova cédula, era um dos vários movimentos para compor uma nova identidade espaço-tempo com valores refletidos e atualizados. “Uma nova identidade precisa ser constituída, sendo necessária a adaptação à existência sem a pessoa, num ambiente desconhecido e inseguro” (Kovács, 2020, p. 11).
Considerando o âmbito afetivo, meu marido e eu vivemos nossa dor compartilhada. Foi um exercício de colaboração e respeito, sem disputas no que se refere a quem vivia a maior dor. Desde então, acredito que não há “dorômetro”. Cada dor é pessoal e intransferível, merecendo ser legitimada e acolhida.
No aspecto familiar, cuidamos do desafio de assimilar a presença ausente e a ausência presente da filha que morreu e validar o convívio com a nossa primogênita, que ganhou o adjetivo de filha sobrevivente. “Os filhos sobreviventes têm que conviver com a fragilidade dos pais e, em algumas circunstâncias, se exigem protegê- los. Há uma autocobrança e sobrecarga em ter que fazer por si e pelo que supõe que o irmão fizesse para alegrar os seus pais” (Tavares e Tavares, 2016, p. 64).
Profissionalmente, aprofundei-me nos estudos sobre perdas, dores, mortes e lutos. Tornei-me tanatóloga e terapeuta familiar, estendendo os atendimentos a famílias enlutadas. Fui articulando minha experiência encarnada às produções teóricas. A teoria nasce com o que é possível, e o diálogo sobre os achados clínicos e as novas pesquisas é continuamente ampliado. O legado dessa experiência pessoal para a minha condição de psicoterapeuta foi a ampliação da minha envergadura clínica, acionando a coragem para lidar com temas espinhentos.
Socialmente, houve mudanças no convívio e nos assuntos que passaram a me interessar, no meu direito e dever de fazer escolhas sobre onde, com quem e como estar. Ousei ampliar o conceito de luto. Não o restringi à morte concreta de pessoas significativas e bichos de estimação, incluindo nesse conceito as perdas simbólicas relativas a separações, mudanças na vida, fases do desenvolvimento e adoecimento. Assumo que todo e qualquer processo de escolher pressupõe renunciar e priorizar, podendo ser tranquilo em algumas situações e bastante delicado em outras. Aprendi que, na vida real e no real da vida, quem não se dispuser a assimilar os contínuos lutos vive muito mal.
Segundo Amaral (2020), o tempo do luto é o tempo da recomposição da alma. Não se trata de um evento, mas de um processo. Espiritualmente, minha compreensão se ampliou e a vida passou a fluir melhor com o reconhecimento do que é sagrado na minha vida.
“A espiritualidade faz com que a busca de sentido esteja presente na vida diária. Portanto, a espiritualidade é estar plenamente vivo, o que é muito diferente de uma vida na ilusão da perfeição… A base da espiritualidade é a qualidade de vida e das atitudes no cotidiano” (Tavares, 2014, p. 12).
A integração desses aspectos me permitiu estar em sintonia com o fluxo da vida. Possibilitou que houvesse sintonia com o ritmo e a pulsação do universo, desobstruindo entraves reais e mentais. Houve uma transposição realizada no exercício de conectar lucidez e produtividade, o que se desdobrou em organização.
Em outubro de 1998, em parceria com o meu marido, criamos a Rede API.
Esse trabalho não nasceu pronto. Fomos construindo as funções, as posições, as regras, escolhendo caminhos à medida que as situações foram se apresentando. A rede funciona em um novo paradigma de parceria, cooperação, corresponsabilidade e crescimento mútuos, coerente com uma postura pós-moderna. (Tavares, 2018, p. 234)
Trata-se de um trabalho voluntário ininterrupto há 22 anos. Em tempos de pandemia, acolhemos profissionais de saúde abalados por atender tantas pessoas que morreram e necessitando administrar os lutos por perder clientes, familiares, amigos e colegas de profissão.
Da complexidade da vivência do processo de luto – que é muito diferente do luto complicado – nos abastecemos de contínuos aprendizados. Aprendi, experiencial e cognitivamente, que a vulnerabilidade é condição vital.
Esteves de Vasconcellos (2002) distingue três avanços da ciência novo- paradigmática em relação à ciência tradicional:
- Do pressuposto da simplicidade para o da complexidade, desconstruindo-se as explicações lineares de causa e efeito em relação aos fenômenos
- Do pressuposto da estabilidade para o da instabilidade do mundo, desconstruindo-se as garantias e certezas.
- Do pressuposto da objetividade para o da intersubjetividade. Não existe uma realidade independente do observador; assim, descontrói-se a ilusão de
Vale compreender que os três pressupostos não se excluem: são eixos interconectados. Humanizar a vulnerabilidade é se apoiar nos pressupostos teóricos desenvolvido pela referida autora.
Terapia narrativa do luto
Segundo Casellato (2020, p. 34), “a narrativa do luto se organiza na direção de um sentido agregador. A intimidade com a diferença gera a reconciliação, e a intimidade com o luto promove a integração da experiência dolorosa e permite o ajustamento às perdas e à vida, apesar de e por meio delas”.
White (1994) explica que os enlutados se mostravam aflitos diante da possibilidade de dizer adeus ao seu ente querido. Sensibilizado pelo intenso sofrimento dessas pessoas, o autor compreendeu que elas haviam perdido muito – não apenas alguém amado, mas uma parte substancial de seu senso de identidade. A desolação era tão grande que ele passou a criar contextos para que as pessoas conseguissem incorporar a relação perdida. Optou, assim, por reincorporar o relacionamento perdido dizendo olá novamente em vez de dizer adeus. Tal orientação o levou a formular perguntas que auxiliassem as pessoas enlutadas a recuperar o relacionamento com a pessoa perdida. Nas respostas, os enlutados relatavam o que percebiam como experiência positiva do convívio com a pessoa que havia falecido. As lembranças provinham de fatos ocorridos e experiências que compreendiam aspectos afetivos e emotivos. Dessa forma, passado, presente e futuro se entrelaçavam para compor novas narrativas.
A terapia do luto permite contatar o que estava esquecido e acessar novas e enriquecedoras percepções e validações de si mesmo. O exercício é honrar a vida além da morte. O desafio é manter e ampliar a conexão com o ente querido, convidando-o metaforicamente às conversações, e manifestar recursos e habilidades. Os enlutados vão se dando conta de seu papel em suas produções, tornando-se ativos na constituição e modelagem da própria vida. Isso lhes permite assumir o curso de sua existência. Passam a ser autores e espectadores de suas realizações, ampliando a autoridade e a autonomia. Há o dizer adeus à realidade material e a integração do olá novamente. Essa metáfora se mostra eficaz na medida em que facilita a expressão do caráter singular e não submete os enlutados a especificações normativas.
Derrida (1995) desenvolve, no campo linguístico, o conceito de ausente, mas implícito. Busca revelar as contradições ocultas nos textos, tornando visíveis os significados reprimidos. Ouso utilizar o termo ausente, mas implícito referindo-me à presença ausente e à ausência presente daquele que se foi. Diz Kóvacs (2021, p. 164): “Cuidado, reflexão e competência são importantes para que se crie uma barreira defensiva no trato do tema morte – ainda uma terra de ninguém no âmbito educacional”.
A psicoeducação em saúde se propõe a reconhecer que o tema morte requer nos abrirmos para o impacto da finitude e desenvolvermos sensibilidade para acolher a experiência de familiares, clientes e amigos.
O processo dual do luto demanda cuidar dos sentimentos diante da perda e engendrar esforços para reestruturar a vida sem a pessoa querida. […] O exagero em uma dessas dimensões pode dar aos emotivos a ideia de que são frágeis e vulneráveis; e aos que buscam a reestruturação após a perda, de que são frios e insensíveis. Cada polaridade tem a sua importância; ambas são complementares e precisam ser reconhecidas. (Kovács, 2020, p. 12-13)
Com a morte da Camile, herdei uma dor que emergiu na minha vida sem aviso prévio. Sentir dor passou a ser sinônimo de não fugir. Experimento essa companheira incômoda, que me tira o sossego e não se despede facilmente. Herdei também a possibilidade de desenvolver calma de espírito, tranquilidade e serenidade, apesar da dor. A aceitação passou a ser a porta da reparação, tendo enorme valor terapêutico. Acredito que a perda irreparável de maior impacto na vida é não aproveitar as oportunidades de aprender com as vivências pessoais.
Vivemos tempos de pandemia e todos temos sido tocados. Vale a disposição para compreender, discernir e acolher. Reconhecer a dor como nossa mestra. A consciência da vulnerabilidade nos salva da ilusão da onipotência. A dor e a enfermidade nos despojam das garantias. Colocam-nos em condição de necessidade. Não podemos ser indiferentes ao sofrimento alheio. O sofrimento se manifesta na carência de sentido. Não há tempo para indiferença e menosprezo. Não é possível construir um mundo diferente com pessoas indiferentes. Devemos nos colocar como irmãos. Os laços da fraternidade merecem ser tecidos de mãos estendidas, com respeito, escutando com o coração aberto, firmes em nossas convicções.
Não há fraternidade se vendermos nossa alma ao diabo. Vivemos um momento de escuta e de aceitação sincera. O mundo sem irmãos é um mundo de inimigos. Prescindir do outro é uma forma sutil de inimizade. Não está nas nossas mãos não sofrer. A dor pode ser ocasião de nos encontrar, mudar o coração com sensibilidade, legitimar nossos semelhantes e defender a vida. Que tenhamos coragem para nos iluminar e nos curar da enfermidade de nos fecharmos em nós mesmos.
Referências
- AMARAL, A. C. Cartas de um terapeuta para seus momentos de crise. São Paulo: Planeta, 2020.
- IBAÑEZ, T. Como se puede no ser construcionista hoy em día? In: Psicología social construcionista. México: Universidad de Guadalajara, 2001, p. 245-57.
- CASELLATO, G. Luto e identidade. In: CASELLATO, G. (org.). Luto por perdas não legitimadas na atualidade. São Paulo: Summus, 2020, p. 25-36.
- DERRIDA, J. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995.
- ESTEVES DE VASCONCELLOS, M. J. Pensamento sistêmico: O novo paradigma da ciência. Campinas: Papirus, 2002.
- KOVÁCS, M. J. Educação para a morte: Quebrando paradigmas. Novo Hamburgo: Sinopsys, 2021.
- KOVÁCS, M. J. Prefácio. In: CASELLATO, G. (org.). Luto por perdas não legitimadas na atualidade. São Paulo: Summus, 2020, p. 7-14.
- SHOTTER, J. Dialogical realities: The ordinary, the everyday, and other strange new worlds. Journal for the Theory of Social Behaviour, v. 27, n. 2/3, 1997, p. 345-57.
- TAVARES, G. R. Morte na vida, vida na morte: Caminho possível? In: TAVARES, G. (org.). Do luto à luta. Belo Horizonte: Folium, 2014.p.12
- TAVARES, G. R. Conectar enlutados: do degradar ao despertar e prosseguir. In: FUKUMITSU, K. O. (org.). Vida, morte e luto: Atualidades brasileiras. São Paulo: Summus, 2018, p. 232- 42.
- TAVARES, E. C.; TAVARES, G. R. (orgs.). A fratura da fratria. In: E a vida continua…
- Belo Horizonte: Edição do autor, 2016, pp. 64-69.
- WHITE, M. Decir de nuevo: ¡Hola! La incorporación de la relación perdida em la resolución de la aflicción. In: Guías para una terapia familiar sistémica. Barcelona: Gedisa, 1994, p. 57-68.
Gláucia Rezende Tavares
Revés de um parto: Luto materno
São Paulo: Summus, 2022, p.79-87