Os meus pais tinham alguns poucos livros e discos na estante. Eu tinha entre oito e nove anos quando, entre ler e ouvir, comecei a perceber que a vida ia além do que eu conhecia na comunidade periférica em que vivíamos. Da escola, a minha lembrança mais alegre é da professora de Ciências, Carlota Macedo, ligando o toca-fitas para iniciar uma música que nos ajudaria a compreender a fotossíntese. A voz de Caetano Veloso cantando Luz do Sol era de um encanto que percorria meu corpo, como alguém podia falar de um evento bioquímico de forma tão poética?
Desconfiei, então, que as narrativas transcendem os fatos, que algo em nós passa pela forma de contar que produz efeitos de sentir. Ali algo se instalou em mim, e eu procurei, sem saber exatamente o que, onde e como meios de compreender a força do simbólico como criação do real. Em minha escuta, pela primeira vez, a arte traduzia algo sobre a vida. Eu ainda não sabia nomear, mas a canção me dizia que os seres são interconectados. Passei dias e dias maravilhado com a luz do sol que se verte no verde da folha, com a sonoridade do “reza, reza o rio”, com o curso do córrego ao rio, do rio ao mar, na marcha do homem sobre o chão, enfim, com a natureza do interser, como nos ensina o mestre vietnamita Thich Nhat Hanh.
Foi com as Letras que iniciei minha trajetória acadêmica, tomando a palavra como minha quarta dimensão, conforme Clarice Lispector. Entre a palavra dura das regras gramaticais e a sutileza da escrita literária, cheguei ao mestrado em Estudos da Linguagem da Universidade Federal Fluminense e me dediquei à Análise do Discurso. Eu estava em busca de dispositivos que me ajudassem a captar a face oculta da linguagem. Tive então meu primeiro contato com a perspectiva sociointeracionista e aprendi que o sentido não está inscrito no sujeito, mas nas trocas, no relacional, em função dos papéis que cada um ocupa em uma dada situação. Em uma espécie de antevisão, eu começara a me aproximar do pensamento sistêmico.
Um pouco antes de iniciar o mestrado, eu buscava algo que ainda não sabia o que era. A angústia por me compreender me conduziu à formação em Arteterapia. A leitura simbólica do fazer expressivo pelo viés junguiano me permitiu olhar as profundezas entre desenhos, colagens, pinturas e outros canais. De modo inconsciente, no processo de fechamento do meu processo formativo teórico-vivencial em Arteterapia, criei uma instalação que adquiriu uma forma circular. Desde então, compreendi que o humano, como processo vivo, não é linear. Com o suporte de Ana Luísa Baptista e Maria Carolina Nani, fundadoras do Incorporar-te, pude ver no círculo formado minha mandala pessoal como representação da dinâmica interior das partes do meu self enquanto um sistema. No processo de estágio para filiação à Associação de Arteterapia do Rio de Janeiro, teve início meu trabalho com a clínica arteterapêutica.
Na sequência, cursei a formação em Análise Psico-Orgânica, escola francesa de abordagem analítica com mediação corporal. O meu encontro com Paul Boyesen me permitiu confiar ainda mais na palavra, para além do plano conceitual, mas sobretudo no corpo das palavras, em como o corpo se expressa no ato de verbar, isto é, em como o campo simbólico se encarna no orgânico pela via sensório-motora. Também no terreno psicocorporal, meus estudos em Experiência Somática trouxeram um olhar maior para a inscrição do trauma no corpo e para os mecanismos de liberação sutil da hiperativação das respostas de luta, fuga e congelamento. Pela sensopercepção, “uma voz sem palavras”, o sistema nervoso é capaz de processar os eventos estressantes, reestabelecendo a autorregulação e permitindo que o sujeito ressignifique seu sofrimento e se revitalize.
Alguns anos depois, já como formador de terapeutas em Arteterapia, a confecção do Genograma simbólico com uma turma de alunas me trouxe a curiosidade pelas minhas primeiras leituras sobre Terapia Familiar. Meu primeiro contato com a área sistêmica foi com Celma Villa Verde pelo olhar transpessoal das Constelações Familiares que revelam o quanto nossa existência é regida por contratos transgeracionais por meio de lealdades, identificações e alianças.
Um tempo após, ingressei na formação em Terapia Familiar Sistêmica do Caapsy, onde Ana Zagne, Noemia Kraichete e Suely Engelhard me auxiliaram na apropriação do paradigma sistêmico, por meio de uma série de leituras de uma gama de autores das principais escolas, exercícios vivenciais, participação em atendimentos e em equipes reflexivas. Ora em campo com as famílias, ora atrás do espelho, pude também olhar meu próprio sistema familiar e caminhar com um mapa mais apurado pela estrada de me tornar beneficiário do que herdei.
Como membro da família Caapsy, cheguei à ATF-RJ, o que me trouxe o pertencimento a uma rede mais ampla de terapeutas sistêmicos, com os quais eu posso crescer nos encontros. Com a ATF-RJ, tenho acesso a uma sedimentação de saberes tanto pela participação em grupos de intervisão e atualização como pelo incentivo dado a nós, associados, para que possamos participar de eventos nacionais e internacionais. Com o que recebi e recebo dessas escolas e mestres, por meio dos recursos da arte, do corpo e da teoria relacional, prossigo em minha prática clínica e como formador e supervisor de terapeutas em Arteterapia.
André Ximenes
Arteterapeuta (AARJ – 708/0416)
Formador e Supervisor de terapeutas em Arteterapia (INCORPORAR-TE)
Terapeuta em Análise Psico-Orgânica (CEBRAFAPO/EFAPO – Turma Rio VII)
Terapeuta em Experiência Somática (ABT)
Terapeuta de Família e Casal (ATF-RJ – 21203)
Mestre em Estudos da Linguagem (UFF)