Pretendo, aqui, trazer contribuições reflexivas acerca da prevenção ao uso prejudicial de álcool e outras drogas sob a ótica da família, mais especificamente dos valores que ela constrói no seu seio, que são transmitidos através da comunicação verbal e não verbal permeada nos vínculos estabelecidos na convivência emocional entre os familiares.
Promovi um estudo qualitativo com famílias de três gerações (2011) em que uma ou mais pessoas da geração dos netos e/ou dos pais fizesse, ou houvesse feito em algum momento da vida, uso prejudicial de álcool e/ou outras drogas e busquei correlacionar esse uso com os valores construídos nessas famílias. Os netos encontravam-se na adolescência, fase em que o uso de drogas lícitas e ilícitas se dá, geralmente, com os amigos, podendo significar a busca de prazer, extroversão, compartilhamento grupal, diferenciação, autonomia e independência da família. O lado negativo da busca do prazer é o risco do adolescente se tornar adicto, comprometendo a sua trajetória de vida.
Inúmeros estudos evidenciam como fatores que protegem o adolescente contra o uso prejudicial de álcool e outras drogas a relevância dos vínculos familiares fortes; o apoio da família no processo de aquisição da autonomia por parte do adolescente; o monitoramento parental dos diversos processos de crescimento e desenvolvimento; o estabelecimento de normas claras para os comportamentos sociais, incluindo-se aí o uso de drogas. Conforme o estudo apresenta, todos esses componentes são exercitados, ou não, pelas famílias, na elaboração e consecução dos seus valores familiares.
O estudo revelou que programas de prevenção para o uso prejudicial de drogas devem incluir a educação para os valores de acordo com as três categorias que permitem acessá-los: Conflito entre Gerações, Processo Educativo e Valores Familiares.
Valores são os referenciais que norteiam a vida de todos nós, dando forma aos cidadãos. Os valores se compõem de princípios e práticas aprendidos, inicialmente, dentro da família, que decodifica os valores socioculturais para os seus membros. A família é plasmada por laços consanguíneos e de afinidade. Constitui-se como um sistema social complexo formado por diversos subsistemas que compartilham afetos, normas, valores num determinado contexto sócio-histórico, econômico e cultural.
Em nossa cultura, a função básica da família é a socialização de seus membros que se dá através da educação, ativa e passiva. A família é uma instituição mediadora entre o sujeito e os hábitos, as leis e a ética social. Na base dessa formação encontram-se os valores familiares e os socioculturais inferidos, primordialmente de forma inconsciente, na convivência em rede com o tripé família, cultura e sociedade.
A educação para valores na família está ancorada nas três categorias onde se assentam os valores familiares.
• Valores familiares (ensino e prática) e o conceito de família
• Conflito entre gerações
• hierarquia (quem criou os jovens);
• infantilização (responsabilidade/independência);
• expectativa (sonhos/projetos de vida).
• Processo educativo
• vínculo (relação com cada membro da família);
• modelo (pais como modelos de comportamento);
• responsabilidade e limites (estilo de criação).
Para se apreender a categoria Valores familiares é de fundamental importância saber sobre o binômio ‘ensinar’ e ‘aprender’. A visão sistêmica de Maturana nos alerta que o modo de viver em família se dá através da convivência, que provém de climas emocionais diversos. A qualidade de recepção dos ensinamentos dos adultos por parte de crianças, adolescentes e jovens deriva desse filtro emocional.
O critério que os filhos utilizam para aceitar ou rejeitar a orientação dos pais se dá de forma inconsciente e o critério de validação é da ordem do emocional e não do racional. Está claro, então, que ensino e aprendizagem, segundo a visão sistêmica, estão indissociavelmente interligados.
Ensinar ‘ativamente’ os princípios aos filhos significa explicar e, posteriormente, legitimar ou rejeitar a compreensão deles. Ensinar ‘pelo exemplo’ propicia a observação do comportamento do adulto. Educar tem essas duas facetas: o modelo e a ação; o ‘passivo’ e o ‘ativo’.
A simples enunciação de um valor não garante a sua existência, que só se concretiza na ação. Quanto maior for a coerência dos adultos/pais ou substitutos entre o que pensam como valor importante (o princípio) com a prática (ação) desse valor, menor serão as ambivalências, os conflitos e as ambiguidades relativos aos valores familiares que irão transmitir aos membros da geração seguinte.
A segunda categoria que compõe os valores familiares é o Conflito entre gerações, que se subdivide nos temas hierarquia, infantilização e expectativa.
A organização da hierarquia no sistema familiar influencia a constituição dos valores familiares. A ‘organização da hierarquia’ revela a forma como os valores são construídos através das gerações. Para acessar a organização familiar, interessa saber quem da família cuidou dos jovens e os educou: a geração dos avós, a geração dos pais ou ambas? Que influências essa criação pode ter na aquisição dos valores familiares? Há conflitos entre as gerações na educação dos filhos e netos e como estes conflitos são encaminhados e solucionados? Quais influências os conflitos podem ter na aquisição dos valores familiares pelos filhos e netos?
A infantilização dos filhos contribui para o não cumprimento dos valores familiares e sociais. É importante saber sobre o grau de maturidade que perpassa as três gerações, a construção de metas a alcançar pelos filhos e a autoimagem, que é influenciada pela convivência com os familiares. A questão aqui é sobre o binômio responsabilidade e independência.
A expectativa dos pais quanto à realização pessoal e profissional dos filhos é, ou não, conflitante com a dos filhos? Aqui, é importante saber sobre a construção de projeto de vida para os filhos que se liga à percepção construída do ‘eu’ a partir da priorização de determinados climas emocionais na convivência dos membros da família. Esses momentos criam as diversas possibilidades de recepção dos ensinamentos familiares, sendo os valores um deles.
A terceira categoria que compõe os valores familiares é o Processo educativo, que se subdivide nos temas vínculo, modelo e responsabilidade e limites.
A educação é um processo que ocorre durante toda a vida e tem efeitos conservadores de longa duração que não se modificam facilmente, pois constituem parte integrante do sistema de formação das pessoas.
O vínculo é uma das forças motrizes para a referência de transmissão de valores. A qualidade da relação que se estabelece entre avós, pais, filhos e netos influencia a orientação de princípios, atitudes e práticas familiares. O acesso aos vínculos familiares se dá através da avaliação da relação de cada membro da família com os outros familiares.
O modelo refere-se à identificação dos filhos com os pais que ocorre, na maioria das vezes, de forma inconsciente. Os filhos absorvem quaisquer valores transmitidos pelos pais a partir de seu comportamento, suas atitudes, sua expressão de sentimentos na vida cotidiana. De que forma os pais e avós foram modelos de comportamento para os filhos e netos? Mais alguém lhes serviu de modelo na vida?
Educar para a responsabilidade e dar limites são ações que apontam para a qualidade do uso da autoridade na relação de avós, pais, filhos e netos. O ‘estilo de criação’ empregado pelos pais – controle ‘com autoridade’, autoritarismo e permissividade – influencia na aquisição dos valores familiares. Portanto, é importante atentar para como são distribuídas as responsabilidades, os deveres dentro da família, e como cada um se comporta quanto a isso. Igualmente é relevante indagar sobre limites e autoridade familiar.
Aquilo que foi ensinado ao longo do desenvolvimento dos filhos e por eles aprendido tem repercussões no seu viver em comunidade, em sociedade. As vivências que dão forma aos valores são tecidas no cotidiano de cada família geração após geração, e determinados comportamentos, atitudes e práticas são reforçados no interior das culturas familiares, dando forma aos seus valores.
Os valores familiares não são uma ‘entidade’ existente fora dos sujeitos e de suas relações primárias. Alguns são decodificados a partir da cultura e outros são reinventados pela família, em um processo permanente de coconstrução.
Penso que programas de prevenção podem se orientar para o estímulo à reflexão dos participantes da família estimulando a reflexão sobre as coerências e incoerências dos princípios e das práticas de seus valores, o leque de possibilidades que se abre a partir dos diferentes estilos de criação, perpassando a organização da hierarquia da família; a construção dos modelos familiares; a educação para a autonomia; e a elaboração de metas e de projetos de vida para filhos e netos.
Schenker M. Valores Familiares e Uso Abusivo de Drogas. Rio de Janeiro: editora Fiocruz, 2011.
Miriam Schenker
Psicóloga, Terapeuta de Família, Pesquisadora colaboradora do Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli – CLAVES/ENSP/FIOCRUZ