Novas Formas de Famílias Advindas das Técnicas de Reprodução Assistida

O conceito de família tem passado por grandes transformações diante das mudanças sociais que acontecem na modernidade. Neste contexto dinâmico, as novas descobertas no campo da reprodução humana assistida “revolucionaram” o mundo. Depois da inseminação artificial, da fecundação in vitro, do empréstimo de útero – a chamada barriga de aluguel -, congelamento de embriões, do homem grávido, do útero artificial, já nos perguntamos qual será o próximo passo. A verdade é que, com o desenvolvimento cada vez maior das pesquisas médicas-tecnológicas, a fertilização assistida vem seguramente ampliando os limites da fecundidade masculina e feminina.

Sabemos que a impossibilidade de procriação apresenta-se como obstáculo ao projeto de vida da maioria das pessoas. Na nossa cultura é cultivado tanto o desejo de filho, quanto o seu desdobramento, ou seja, o sonho de constituir família- ambos imperativos para que o casal sinta-se de acordo com os padrões de “normalidade”, segundo os quais a maioria tem filhos. Como consequência, há o previsível constrangimento relativo ao diagnóstico de infertilidade. Em geral, constituir uma família é o desejo da grande maioria dos casais e isto representa ter filhos. Nesse contexto, a impossibilidade de procriação é um grande obstáculo a tal projeto familiar.

Ocorre que o projeto de constituir uma família com filhos, muitas vezes, é atravessado pela dificuldade em conceber um filho por vias naturais, o que por sua vez acarreta nos casais inférteis a necessidade de recorrer à assessoria médico- tecnológica na área de reprodução humana.

Com o advento e a difusão das técnicas da reprodução medicamente assistida, homens e mulheres, independentemente de seu estado de união, orientação sexual ou idade, ou seja, homossexuais, pessoas solteiras, mulheres fora da idade reprodutiva, dentre outros casos, passaram a utilizar as citadas técnicas para chegar a concretizar a aspiração de ter filhos.

O estabelecimento do método veio responder a este desejo: constituir família e/ou aspirar à continuidade, projeto que vem legitimando a proposição de inovações biotecnológicas no campo da medicina reprodutiva. Nessa virada contemporânea de perspectivas, o sonho de ter filhos, concretizado através da reprodução assistida, possibilita aos sujeitos “socialmente excluídos” da reprodução estarem “tecnologicamente incluídos” e demandarem à medicina reprodutiva o filho desejado.

São inúmeros os motivos pelos quais as pessoas querem ou não ter filhos. Tais razões, nem sempre explicitadas e assumidas, vão desde a vontade de aprofundar a relação de amor entre o casal, até a esperança de realizar desejos e aspirações que os próprios pais não conseguiram realizar, dando continuidade à sua existência. Uma geração de descendentes, além disso, implica no mito de conservar as raízes e o nome da família e esbarra no receio de ter que se assumir como mulher, homem ou casal sem descendência consanguínea e sem possibilidade de perpetuar seu patrimônio genético – em última análise, sua identidade, sua própria existência.

O discurso materno voltado ao desejo de ter filhos, sobretudo a partir das novas demandas oriundas das descobertas no campo da medicina reprodutiva, permite escolher, inclusive, como gerá-los e como tê-los. Inicialmente, foi (1) a emancipação da mulher­ que produzia o poder feminino no citado processo: “Um filho se eu quiser”; incluem-se também nesta “libertação” (2) os métodos anticonceptivos que garantiam a opção: “Quando eu quiser”; e ainda, (3) o apoio do recurso médico (ainda em estudo) do útero artificial prometendo: “Como eu quiser”.

A ausência de gravidez representa a falta de algo fundamental e a mulher que afirma desejar um filho constrói uma demanda, mesmo que não seja manifestamente endereçado a alguém. Nos casos da fertilização artificial, essa demanda é dirigida ao médico e ao saber da medicina.

Já para a grande maioria dos homens, o fato de não conseguir engravidar sua parceira põe à prova o seu papel e a sua identidade masculina. A vivência emocional da infertilidade por um homem é muito angustiante uma vez que, na nossa cultura, um dos mais fortes sinais de “virilidade” é justamente esse: ser um bom reprodutor.

Frequentemente, o diagnóstico de infertilidade masculina acaba por interferir de forma significativa na vida sexual dos homens, podendo acarretar falta de libido, distúrbios ejaculatórios e impotência sexual.

Os casais que inférteis, ao iniciar o tratamento, ambos vivenciam momentos de muita expectativa quanto aos resultados das técnicas de reprodução assistida. É previsível o alto nível de ansiedade e a expectativa sobre os efeitos e o resultado do tratamento. Por este motivo o fracasso pode gerar forte instabilidade emocional, sentimentos de frustração e raiva; destacamos também que o isolamento dos contextos sócio-familiares é bastante frequente durante essa fase delicada. O movimento é quase pendular: cada novo ciclo de tratamento implica em esperança pelo filho desejado e, consequentemente, o fracasso gera sentimentos de impotência e desesperança.

A constatação do diagnóstico de infertilidade é acompanhada com medo, ansiedade e sofrimento pelas pessoas que desejam e tentam ter filhos. Historicamente ela sempre foi associada a fatores femininos. Atualmente, com os avanços da medicina reprodutiva, a infertilidade vem sendo enfocada e investigada diferentemente. Hoje, considera-se que o problema envolve o casal e esse é avaliado conjuntamente quando surgem dificuldades de engravidar.

O impacto da infertilidade pode ser profundo, sendo comumente vivido como um evento traumático, o que pode gerar estresse na relação conjugal. Na esfera individual pode ocorrer uma crise de identidade e uma diminuição na autoestima. Na esfera conjugal a relação como um todo pode se tornar “infértil”. No âmbito social pode ocorrer uma tendência ao isolamento por sentirem-se inferiores, ou por não suportarem os sentimentos despertados quando do convívio com casais com filhos.

A partir da década de 80 a tecnociência reprodutiva surge para poder dar conta do desejo das pessoas que não podem conceber por vias naturais seja por causas de infertilidade seja por impossibilidade de procriar dentro da formação familiar, por exemplo, homens ou mulheres sem companheiros ou casais homossexuais. Os avanços da Medicina Medicamente Assistida permitem a concepção de filho sem a necessidade da relação sexual. Essa tecnologia possibilita diversas formas de concepção, tais como, fertilização in vitro,doação de óvulos, espermatozoides ou embriões, utilização de um útero de substituição, a chamada “barriga de aluguel”. Essas técnicas podem ser homólogas ou heterólogas. Na primeira situação o material genético é utilizado proveniente do casal que busca o procedimento. Na segunda a fecundação depende do o material genético de terceiros, é a chamada terceira parte da reprodução.

Através da doação de gametas e da maternidade substituta pode-se ter uma criança com duas mães e dois pais: um casal que doa o material genético e um casal constituído por uma mãe e um pai social que acolhe a criança como filho. Casais homossexuais recorrem à reprodução assistida utilizando gametas de terceiros ou/e com doação por parte de um dos parceiros. Em casais homossexuais femininos, uma das mulheres pode doar os óvulos e a outra gestar a criança. É possível ter filhos de pais que já morreram através da fecundação post-mortem e ainda os casos mais recentes dos transexuais.

É fundamental destacar que o casal que chega para uma doação de gametas, na maioria das vezes, já percorreu um longo caminho. Desde o diagnóstico da infertilidade, a investigação de suas causas e até a realização das mais variadas terapêuticas, muito tempo de suas vidas se passou. Todo este processo marcado por esperanças e frustrações, provoca na singularidade de cada história feridas de intensas e variadas profundidades. O limite de não poder mais ter um filho genético se impõe e diante dele, a indagação: o que me tornará pai ou mãe? Uma profunda e necessária tristeza deverá advir deste limite, para que o casal consiga elaborá-la e então, somente então, abrir-se para outras possibilidades de realização do desejo de paternidade e maternidade. Cansados, confusos, inquietos, mas, ainda esperançosos, é assim que chegam a maioria dos casais para os quais a doação de gametas é indicada.

Muitas inquietações, portanto, acompanham este processo desde o primeiro momento quando o médico sugere a doação de gametas. Nessa etapa, o mais comum é o sentimento de impotência e tristeza. O outro momento bastante delicado é a escolha de doador/a e a aceitação de um terceiro anônimo.

O casal que decide constituir sua família utilizando o recurso de doação de gametas, além da necessária reformulação sobre a paternidade/maternidade, deve renunciar ao desejo e à possibilidade de ter um filho genético; uma encruzilhada que divide o desejo de formar uma família em dois caminhos: ou se renuncia ao filho, ou se pensa em alternativas, seja receber doação de um ou ambos os gametas para gestar o filho que irão criar e educar, seja adotar um filho.

É necessário que o luto de não poder gerar biologicamente um filho, seja elaborado para que o casal possa refazer o projeto de maternidade/paternidade seja refeito para então se abrir um espaço para o surgimento de um novo projeto de parentalidade.

Faz-se necessário um trabalho psicológico para que o não pertencimento a uma cadeia geracional fique reduzido ao DNA e a existência do filho possa ser construída sobre outras bases. Destacamos ser muito importante avaliar o estado emocional do casal focalizando na questão de o quanto estão sendo afetados pela impossibilidade de transmitir a carga genética ao filho e a aceitação de serem pais através dessa técnica.

Embora a grande maioria das mulheres que procuram os tratamentos de infertilidade seja casada, nos últimos anos, vem aumentando o número de mulheres solteiras que desejam ter filhos. Nestes casos, a única maneira de ficarem grávidas, será por meio de doação de sêmen. Muitas tentam recorrer a um banco de sêmen, outras ainda tentam procurar a ajuda de um amigo solidário que se proponha a doar seu sêmen para uma inseminação, com o compromisso de que ela, a futura mãe, jamais exigirá dele as obrigações e o reconhecimento de um progenitor. Entretanto esta busca, na maioria das vezes, tem um final frustrante. A maior parte dos candidatos, mesmo com vontade de colaborar, desiste desta parceria ao tomar conhecimento que a lei é soberana e dará a esta criança os direitos legais que determinam as obrigações deste pai, independente de qualquer contrato.

A gestação de substituição acontece quando há a fertilização in vitro e a mulher doadora de material genético possui algum problema que faz com que seu útero não seja apto a gerar o embrião. Assim, o embrião se desenvolverá no útero de uma “mãe hospedeira”. A mãe gestacional hospeda o embrião para que ele possa ser gerado e assina um termo de consentimento e não espera nem pretende ter alguma responsabilidade em relação à criança após o nascimento. Trata-se de uma situação bastante complexa, na qual, de um lado, há uma mãe biológica, que durante a gestação do filho no ventre de uma outra mulher, aguarda com muita ansiedade ao nascimento do filho,e, do outro, a mãe substituta, que durante a gestação de um filho que não será seu, vê seu ventre crescer e uma vida nele se desenvolver , podendo inclusive, estabelecer uma relação afetiva com o bebê.

Atualmente, como consequência das novas técnicas de reprodução humana, e do afeto como fator fundante da parentalidade, o princípio mater semper certa est não pode ser encarado como verdade absoluta.

A emergência destas novas formas de família requer um aprofundamento da investigação,porém não se trata apenas de as comparar às famílias tradicionais mas sim, de compreender as suas vivências únicas em torno da experiência de parentalidade.

O acompanhamento psicológico deve ser disponibilizado em qualquer fase do diagnóstico e do tratamento, para que os casais possam, num primeiro momento, aceitar o diagnóstico médico e, num segundo momento, ter uma melhor compreensão das exigências inerentes aos processos que terão de enfrentar, bem como tomar decisões mais informadas. Neste processo, o profissional de saúde mental deve ajudar os casais a desenvolver estratégias e estilos de coping adaptativos e fornecer suporte emocional para que estes possam expressar as suas emoções e explorar questões que sintam como mais ameaçadoras.

O acompanhamento psicológico assume especial relevo em situações tão complexas como quando um casal tem a indicação de recorrer a um doador/doadora de sêmen/óvulo para ter o filho desejado. Neste contexto, o objetivo do acompanhamento deverá ser garantir que todas as partes (casal, doador/doadora e criança) se beneficiem do recurso a um doador/doadora. Tal processo implica numa compreensão dos fatores que levaram à necessidade de se recorrer ao doador/doadora, bem como de todas as implicações psicossociais que resultam desta opção.

O papel do profissional de saúde mental é oferecer espaço de reflexão a quem doa e a quem recebe gametas ou embriões, trabalhando as motivações, implicações, desejos e ansiedades concernentes a decisão de doar-receber gametas ou embriões. A avaliação e o apoio psicológico aos doadores e receptores de gametas é requisito indispensável para garantir o bem estar emocional, inclusive para sua descendência, consolidar a decisão e facilitar a adaptação à maternidade e paternidade sem vínculo genético.

É fundamental destacar que o casal que chega para uma gestação de substituição, na maioria das vezes, já percorreu um longo caminho. Todo este processo marcado por esperanças e frustrações, provoca na singularidade de cada história feridas de intensas e variadas profundidades. O limite de não poder mais ter um filho de forma tradicional se impõe e diante dele, a indagação: o que me tornará pai ou mãe?

As dúvidas e os medos das pessoas que se veem envolvidas em tais situações são legítimos e, nesse novo percurso, através dos recursos da Medicina Reprodutiva, uma nova ordem surge e impulsiona para lugares ainda não percorridos e portanto, desconhecidos.Toda a questão da revelação para a criança e/ou família e amigos é outro aspecto que tem sido objeto de debates e estudos internacionais, na tentativa de encontrar resposta neste difícil e complexo tema.

Helena Prado Lopes